Não há primavera no sertão, no entanto, a árvore das carambolas está florida e um batalhão de negros soldadinhos faz colônia no tronco, nos ramos, nas folhas; os bichinhos se divertem de galho em galho, de flor em flor. Debaixo da árvore que faz sombra no quintal de casa, cresce Maria. Solitária, a menina costuma comer o fruto nos fins de tarde e brincar com os companheiros desiguais. Eles são hábeis, escapolem dos seus carinhos e alçam voo para um lugar que a menina vive em querer conhecer. Somem no céu, escorregam no arco-íris e voltam pra casa mais tarde, sempre junto com o nascer do sol. Soldadinhos e borboletas tem esta tendência de ganhar o firmamento e causar inveja às crianças que não entendem porque não tem asas.
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O dia em que Maria nasceu foi místico, carregado de magia. Quando abriu os olhos, todos viram que duas estrelas estavam guardadas dentro deles. O brilho foi tão grande que o médico obstetra e os enfermeiros que estavam na sala de cirurgia, ao verem tamanha intensidade, perderam a visão por mais de meia hora. Todos ficaram impressionados na Unidade de Saúde: da senhorinha que cuidava da limpeza ao diretor, que fez questão de conhecer a menina (foi de óculos escuros com medo de cegar, apesar de o brilho já ter diminuído e não oferecer mais riscos a visão dos comuns). Foi um corre-corre sem fim. Muita gente da cidade quis ver a menina que trazia as estrelas no olhar. Uns diziam que era milagre de Nossa Senhora Aparecida, outros, não menos crentes, diziam que era obra de Frei Damião. Houve até quem dissesse que era sinal dos tempos, artifício do capeta, obra da besta. O estardalhaço foi tanto que até quiseram fazer romarias e acender velas no caminho que dava no sítio onde a menina morava. Mas logo o avô reprimiu: “onde já se viu, esse bando de desocupado espiando dia e noite minha casa?”. Depois de um tempo a cidade esqueceu...
Maria foi crescendo ali: interior da Paraíba, zona rural do Sertão. Enquanto crescia, a mãe foi percebendo que a fala demorava a soar. Maria aprendeu a andar muito jovem, se interessava por música, adorava rabiscar e folhear livros. Mas falar que é bom, nada! A mãe pensava que era o pouco contato com outras crianças, já que moravam num sítio muito afastado e Maria não tinha irmãos. Rezava todos os dias para ouvir a voz de sua filha que deveria ser doce, que deveria ser suave e trazer-lhe paz. A única coisa que podia fazer, levando-se em consideração os laudos médicos que apontavam a perfeita saúde nas cordas vocais da menina, era rezar e fazer chá. Fazia chá de casca de cebola todos os dias, além de chá de limão com um dente de alho e cinco gotas de mel às segundas-feiras. A menina também bebia água benta com romã e fazia compressa no pescoço com o chá das folhas de carambola uma vez por semana. Nada disso adiantava. Maria já era uma moça, tinha para mais de 13 anos e continuava em silêncio.
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Numa tarde, quando Maria estava debaixo do pé de carambola, brincando com as borboletas, teve a impressão de ouvir um sussurro, uma voz que vinha dos fundos do terreiro, parecia vir do chão batido que guardara uma sabiá que morrera há uns anos; era o bicho de estimação da menina. Saiu procurando e tentando entender o que o som lhe dizia. Caminhou, caminhou, até chegar ao jarro das roseiras amarelas que marcava exatamente o local onde seu bichinho havia sido enterrado. Não ouviu mais os sussurros, mas entendeu perfeitamente, existia alguma coisa muito distante dali que lhe pertencia e que ela deveria ir buscar. Ficou obcecada com a ideia de viajar, sentia cada vez mais forte um sentimento de falta. Começou a programar uma viagem, cujo roteiro e o modo como se daria, a jovem ignorava completamente, sabia apenas que deveria acontecer aos 15 dias do mês de agosto.
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Quando a mãe de Maria se deu conta, desesperada, da falta da filha, saiu a procurar pistas nos blocos espalhados pela casa. Leu em um deles: “15 de agosto: Assunção de Maria.” Pensou que fosse aula do catecismo, não deu importância para as buscas. Saiu procurando mais pistas, leu no bloco da cozinha: “Mãe, fui buscar uma canção”. A mãe de Maria não entendeu nada, pensou “mas que filha desbaratinada!”, “onde se meteu essa menina?”. Dobrou os joelhos e se pôs a rezar de fronte a imagem da virgem. Acendeu duas velas: uma para cada brilho de estrela que se via no breu do firmamento, apenas duas estrelas enfeitavam o céu naquela noite, pareciam os doces olhos brilhantes e amendoados de Maria. A mãe pediu com fé para que revisse a filha o quanto antes. Rezou tanto que adormeceu ali mesmo, agarrada com um terço, pertinho do oratório que já pertencera a sua bisavó.
Quando o sol vinha trazendo a manhã, trouxe consigo um canto que ecoou em toda a comunidade, as poucas casas, embora fossem afastadas umas das outras, eram todas tomadas pelo mesmo êxtase de uma doce voz que entoava um canto angelical. Era Maria, Maria menina moça de tranças e vestido axadrezado, descendo dos céus rodopiando, linda e rodeada de soldadinhos e borboletas, cantando na mais plena afinação.
Conta-se essa história naquela pequena comunidade do sertão. É esta a assunção que se comemora por aquelas bandas aos quinze dias de agosto, a assunção de Maria, a menina que devolveu as estrelas ao céu e trouxe para a Terra seca do sertão a mais bela voz de anjo.
(Yvanna Oliveira)
http://entreprosaepoesia.blogspot.com.br/2012/10/assuncao-de-maria.html